quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Marconi Notaro No Sub Reino dos Metazoários

Hoje vou falar de uma das minhas descobertas discográficas dos últimos tempos. Tenho feito incursões na cena musical pernambucana dos anos 70 e, ajudado por um amigo, entrei no mundo de Marconi Notaro No Sub Reino dos Metazoários.
Marconi era poeta e compositor, figura underground da cultura e boémia recifense desses anos. E lançou este disco, o seu único registo musical, depois desapareceu na obscuridade. Ou talvez nunca tenha saído dela.
No Sub Reino dos Metazoários é um disco onde se respira liberdade, rock, piscadelismo e cultura popular nordestina se enlaçam deliciosamente. E onde o poeta se mostra em registo confessional. Como aqui, neste  pedaço da letra de Não Tenho Imaginação Pra Mudar de Mulher

Esse nervoso é que me mata
essa ausência essa falta de você é que destrói
Esse nervoso é uma bola colorida
é uma pata de cavalo de corrida
É uma maçã, um adão
é uma neurose, uma curtição
Uma cerveja pra pagar
um fumo fino pra fumar
um novo beijo a se pedir
Esse nervoso, essa vontade de partir
parece que nem sou eu que to aqui
Essa chuva me acalma
mas enerva o outro eu
E me mistura com o seu e me alaga de agonia
esse nervoso é uma porcaria
Eu não queria nem nascer se não nascesse pra você
Não queria nem pedir pra você ficar
pra partir...



segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Duplo Amor

O tempo frio arrasta-me  para o mundo da sétima arte. Entro no mundo dos filmes talvez buscando acrescentar sentido à minha realidade de todos os dias. E conforto também. É terapia sim, mas tem riscos. E às vezes pode correr mal.

Pode ser na escuridão de uma sala de cinema ou no aconchego do lar, fazendo recurso aos inevitáveis dvds. E ontem foi em casa, pela noite dentro, que descobri um filme muito especial, um pequeno tesouro. Falo de Duplo Amor, do cineasta americano James Gray. 
Dele já conhecia Nós Controlamos a Noite, mas este Duplo Amor entranhou-se. Em ambos, a paisagem invernosa e cinzenta, bela e cheia de espessura. E também a o microcosmos dos judeus oriundos de Odessa.

A atmosfera deste filme parece saída das Noites Brancas de Dostoievski. Leonard/Joaquin Phoenix é um desses seres desajustados, não em São Petersburgo, mas sim num bairro de Nova Iorque. Trabalha com o pai no pequeno negócio deste, uma lavandaria, mas o seu ser exprime-se através da fotografia quase só feita de paisagens e nas pequenas brincadeiras. É um sonhador presa fácil da depressão e do suicídio (a primeira sequência é a de uma malograda tentativa).

James Gray filma o estado amoroso com uma singularidade sem paralelo no mundo cinema de hoje. Essa forma admirável de filmar é mais devedora da literatura do que do cinema.

Na história há duas mulheres: Michelle/Gwyneth Paltrow, que habita no mesmo prédio de Leonard, e
Sandra/Vinessa Shaw, filha de um comerciante judeu do bairro.
Michelle, magnífica interpretação de Gwyneth Paltrow, é fogosa e sedutora, mas também frágil; inconstante, com problemas emocionais e dependência de drogas.

Sandra parece querer resgatar Leonard da solidão, ama nele a diferença. Ela é apaziguamento onde Michelle é risco e imprevisibilidade.

Leonard vai desenvolver por Michelle um amor obsessivo, por ela parece disposto a tudo, mas mantém sempre os  laços com Sandra. Duplo Amor espelha a complexidade dos sentimentos, e Leonard não é um ser vulgar.

Na admirável sequência final, Leonard prepara-se para consumar a fuga com Michelle, rumo a São Francisco. Porém, o plano desta a atravessar o estreito e mal iluminado corredor do prédio em direcção a Leonard diz-nos que não; que isso não vai acontecer. E o resto? Bem, o resto poderia ser trágico...

Tudo neste filme de James Gray é de uma beleza contida. A luz, a cor e tons  cinzentos predominantes.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O resto da história

O resto da história, segundo Grand, era muito simples. É o mesmo para todos: a gente se casa, ama ainda um pouco, trabalha. Trabalha tanto que se esquece de amar. Jeanne trabalhava também, já que as promessas do chefe da repartição não tinham sido cumpridas.
Aqui, era preciso um pouco de imaginação para compreender o que Grand queria dizer. Com a ajuda do cansaço, ele deixara correr as coisas, tinha-se calado cada vez mais e não cultivava na jovem mulher a ideia de que era amada. Um homem que trabalha, a pobreza, o futuro lentamente fechado, o silêncio das tardes em redor da mesa - não há lugar para a paixão num tal universo. Provavelmente, Jeanne tinha sofrido. Contudo, ficara: acontece que se sofre muito tempo sem saber. Os anos tinham passado. Mais tarde, ela partira. Na verdade, não partira só. ”Gostei muito de você, mas agora estou cansada. . . Não me sinto feliz por partir, mas não é necessário ser feliz para recomeçar.” Eis, em resumo, o que ela lhe escrevera.

Joseph Grand, por sua vez, tinha sofrido. Teria podido recomeçar, como observou Rieux.

Mas faltava-lhe fé.

Albert Camus, em A Peste.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Setúbal, eleições e democracia local

Na condição de indígena de Setúbal, não poderia deixar de espreitar os resultados das eleições autárquicas de Domingo último. Porque a democracia local interessa.

A primeira impressão é a de que quase nada mudou, a correlação de forças, saída das eleições de 2009, permanece quase inamovível em 2013: a CDU conserva a maioria absoluta de vereadores na Câmara (mais um eleito do que toda a oposição) mas  não conseguiu superar inteiramente o cenário de maioria relativa na Assembleia Municipal. Isso já era marca da política local de há quatro anos atrás.

Se em termos da distribuição de mandatos nada de novo, já em matéria de votos o caso muda de figura: todas formações partidárias perdem em relação a 2009, Até mesmo a CDU, a vencedora desta eleições,baixa a sua votação; na verdade, não obstante ser hegemónica no concelho, a coligação está em perda desde 2005.

Os  partidos da oposição, por seu lado, parecem em Setúbal padecer de uma qualquer  incapacidade congénita.O PS e o BE conseguiram a proeza de descer as suas votações. Quanto ao PSD e ao CDS, juntos valem agora pouco mais de 5000 votos, mas isso são as vicissitudes da troika e da política de austeridade imposta. 

Muito poucos foram às urnas votar. Menos de 40% dos eleitores inscritos. 

Assim, a abstenção foi a rainha destas eleições, devidamente acompanhada pelos brancos e nulos em crescendo de votos: representam quase 8% dos votos expressos, mais do que a votação obtida pelo BE.

Perante este quadro abúlico, feito de abstencionismo em massa e de oposições sem vontade de poder, algo está podre no reino da Dinamarca. E não há democracia que resista à falta de oposições. Porque poder, aqui entendido como o governo da coisa pública, e oposição são as duas faces da democracia.


Há um vazio cada vez maior, isso parece ser o traço dominante da paisagem política setubalense. E não sei quem o poderá vir a preencher, é questão em aberto. A oposição partidária? Essa não dá sinais de o ser capaz. Cenário propício, maduro para um  independente? Talvez, mas também não vislumbram sinais disso numa sociedade civil  frágil e cada vez mais depauperada como é a nossa. 

Enfim, resta-nos a esperança de que as coisas nem sempre foram assim. Setúbal foi, no passado, exemplo de participação  cívica.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Servidão e desajustamento

A nossa civilização asfixia-nos cada vez mais nos estreitos limites da condição de empreendedor ou de colaborador, para empregar duas expressões da novilíngua reinante. 

As categorias empreendedor e colaborador remetem-nos para um mundo asséptico; sem conflitos, sem interesses em oposição. 
De pouco importa clamar que a desigualdade impera, neste mundo de empreendedores e colaboradores. Que muitos poucos têm cada vez mais e que, aos restantes, sobra cada vez menos. Porque também isso foi absorvido pelo duplo-pensar orwelliano, em mentes cativas do discurso dominante.
O pensamento fica assim refém de um léxico empobrecido,a ele se resumindo. Um léxico onde imperam palavras como ajustamento, crescimento, reformas estruturais, entre outras.

Mas a pulsão asfixiante da civilização ocidental é bem anterior a este nosso mundo a caminho de um futuro distópico. 
Também nas primeiras décadas do pós-guerra, nos tempos do contrato social entre capital e trabalho e da repartição  mais ou menos justa da riqueza produzida, ela se manifestava. Desajustamento, infelicidade, desejo de evasão de um mundo conformista, submetido ao primado da produção, do trabalho e do consumo. Em que o ter é tudo e o ser nada.

Pressente-se isso nos Nove Contos (Nine Stories no original) de J.D.Salinger, uma das minhas leituras do Verão. Em contos como Um dia ideal para o peixe-banana, onde a imaginação é uma resposta ao desajustamento, à sociedade mais as suas regras e futilidades, esvaziadas de sentido perante a inocência, a nostalgia mágica da infância. Um conto desarmante, comovente e trágico.

"..'Sibila,sabes o que vamos fazer? Vamos ver se apanhamos um peixe-banana."
"Um quê?"
"Um peixe-banana", disse ele".  [...]
"Não vejo nenhum", disse Sibila.
"Isso é natural. É um peixe com hábitos muito estranhos, mesmo muito estranhos."
Ela abanou a cabeça
"Entram a nadar para dentro de um qualquer buraco que esteja cheio de bananas. À entrada são peixes vulgares, iguais aos outros, mas uma vez dentro do buraco, portam-se como porcos. Sei de alguns peixes-banana que chegaram a comer setenta e oito bananas" [...]
"Depois não conseguem sair do buraco."
J.D.Salinger - Nove Contos

Também na entrevista dada ao Público, o cineasta Victor Erice vai no mesmo sentido:

"Creio que as crianças encarnam nos meus filmes uma certa forma de rebeldia. Mais do quer modificar o meu olhar, transcenderam-no. Sempre me  interessaram as crianças que são verdadeiramente  crianças e não uma cópia prematura dos adultos. O que mais me comove nelas é o seu carácter selvagem, a sua capacidade de resistência face à desgraça, o uso que fazem da imaginação. Definitivamente, a sua capacidade de virar do avesso esse simulacro de vida que a sociedade tece ao seu redor e que chamamos de realidade."
Público, 13-09-13.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Allende vive

Allende vive en cada escuela pública y laica, en cada hospital público, en cada recurso energético salvado de la voracidad de las multinacionales, en la recuperación de la dignidad ecológica, en el derecho a existir de las mayorías indígenas y de las minorías segregadas. 
Luis Sepúlveda

11 de Setembro

Num dia de 11 de Setembro,  chovia em Santiago.  E morria o sonho. A frágil democracia que ousou trilhar os caminhos da alternativa soçobrava, esmagada pelas  armas dos militares golpistas.
Foi no Chile. No ano ido de 1973.
Depois, foi  o tempo dos esbirros e dos rapazes de Chicago.
A história do golpe e das últimas horas de Allende pode ser recordada aqui

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Acho que esta foto rima com férias!

Aka Island - Shomei Tomatsu

Pensamento Mágico

Crescer, eis a questão. Crescimento económico, variações trimestrais do PIB são notícias aguardadas com  ansiedade pelos agentes do nosso  mundo político-comunicacional. Um mundo parte da sociedade do espectáculo, separado desta nossa realidade.
E se as notícias são positivas, logo são propagadas aos sete ventos pelos arautos desse mundo feito de agências de comunicação, de jornalismo abastardado, que a precarização propagada pela crise também não poupou a nobre profissão de informar.
Assim, o tão-esperado crescimento e as variações positivas do PIB remetem-nos para o pensamento mágico  (e não se tornou a ciência económica parte dele?).
Com a crise e a sua receita à base de austeridade, muitos perderam o emprego, a casa. Outros deixaram para trás o país; e os que ficaram  trabalham por cada vez menos e são assolados pelo espectro do desemprego. Mas que importa tudo isso, diante das variações trimestrais do PIB?

Coisas do País do Sol Nascente (2)

Mais fotos de Daido Moryama

Coisas do País do Sol Nacente



Fotos de Daido Moryama



quarta-feira, 3 de julho de 2013

Que dia!

Dia 2 de Junho de 2013, eu a caminho de Lisboa, a caminho da antestreia de Post Tenebras Lux, o último filme do realizador mexicano Carlos Reygadas.
A viagem para Lisboa, a TSF sintonizada e o primeiro-ministro a comunicar ao país que não se demite nem aceita a (irrevogável) demissão do Portas.
Na sala de cinema, a estranheza da escuridão da luz de Post Tenebras Lux; só ficou o silêncio para me reconfortar.
De regresso a casa, a notícia de que a minha mãe estava no hospital.  E amanhã (hoje) o meu dia de anos.

PS. Com a minha mãe está tudo bem, foi só o susto.

terça-feira, 28 de maio de 2013

House of Mirrors

Mundos de Hector Zazou. 
House of Mirrors foi o último álbum legado-nos pelo compositor de todas as latitudes. Depois Zazou partiu.

terça-feira, 21 de maio de 2013

No "estrutural" é que está o ganho!

O estrutural anda na boca do mundo. É grelha de leitura da realidade e receita para o nosso presente de crise.
Se há desemprego, é porque temos um problema estrutural. Se não crescemos, é porque teimamos em não fazer as "reformas estruturais", a nossa poção mágica, dizem-nos  hordas de comentadores e de especialistas.

Expressões tais como "desemprego estrutural" ou "reformas estruturais" são o fetiche do nosso tempo.  Um tempo de falência e  depressão.
Melhor, talvez,deixar de escutar os doutores em finança e economia e voltar aos livros do Asterix. 

PS. Oculta no fetiche, jaz a ideologia: desempregados? Não passam de reformas estruturais; desvalorização interna (em novilíngua, baixa dos salários) e privatizações? Eis a quinta-essência das reformas estruturais! Sem elas, somos só preguiça e ineficiência.

Le Fond de L'Air Est Rouge

O Couraçado Potemkine, de Serguei, Eisenstein, dá o mote a este olhar sobre o desejo de revolução: no ecrã, o grande plano de um marinheiro, depois, em letras garrafais, o apelo "Irmão!". É um pretexto para uma viagem ao coração dos movimentos que corporizavam a revolta nas décadas de 60 e 70.

Recorrendo a imagens documentais de proveniências várias, cujo sentido é ampliado pela força da montagem, Chris Marker oferece-nos um fresco sobre os movimentos de contestação, na Europa e nos Estados Unidos, e as guerrilhas e revolucionários da América Latina. Com o Che e o Vietname em pano de fundo, sem esquecer a Checoslováquia, devolve-nos toda a fragilidade desse tempo de esperança. As contradições como uma torrente, o sectarismo à flor-da-pele, está lá tudo. Os ideais e o voluntarismo desses que queriam a revolução dentro da revolução
O móbil de Marker foi "a nova esquerda" que então emergiu para preencher o vazio entre "a ordem da polícia" e "a ordem da CGT" (a central sindical tutelada pelo Partido Comunista Francês).
Para os que tiverem interesse, está no You Tube. Em duas partes, "Les Mains Frágiles" e "Les Mains Coupées.
Vão ficar a saber por que é que os gatos nunca estão do lado do poder.




quarta-feira, 27 de março de 2013

Estórias da Resistência


Uma heroína da BD. Francesa e de esquerda, a combater a ocupação alemã.
Da obra de Gibrat, O Voo do Corvo. 

Chipre e a lei do mais forte.

Muda-se o ser, muda-se a confiança. E Chipre passou de modelo deste nosso capitalismo globalizado, hábil actor na contenda pela atracção dos capitais financeiros, a lavandaria da Europa.  A lavandaria do dinheiro sujo que vem do Leste, da Rússia de Putin.
Os arautos do capitalismo globalizado sem freios exaltavam este mundo feito de livre-concorrência, única medida do universo. 
Impunha-se saber atrair estes fluxos financeiros, pouco importando de onde provinham, porque, afinal de contas, dinheiro é dinheiro e escrúpulos não são para aqui chamados; a não ser enquanto expressão de atraso e imobilismo, afinal de contas, eles, os neoliberais, são amorais por excelência.
Com a crise, o dinheiro voltou a ser um bem escasso, tal é sentido com particular agudeza na nossa Europa, onde a competição se tornou brutal. E o pequeno Chipre, a braços com bancos afogados em títulos da dívida pública grega entretanto reestruturada, viu ser-lhe quebrada a espinha dorsal do seu sistema financeiro e, já agora, da sua economia. Não houve contemplações por parte da Europa, melhor dizendo, da Alemanha. Como o predador que se abate sobre a presa já debilitada, dando-lhe o golpe de misericórdia.
É um sinal dado aos investidores: ter o dinheiro na periferia comporta riscos avultados, depósitos e  poupanças poderão ser alvo de um qualquer confisco. Melhor é mesmo conservar o dinheiro no seio dessas economias que formam o core business da União Europeia. Como a Alemanha. É a lei do mais forte, é assim o darwinismo social das nações.

PS. Pelos vistos, só há dinheiro sujo e oligarcas russos em Chipre. Nada disso em Londres, onde se passeiam tranquilamente criaturas como Roman Abramovitch. Ou onde encontraram exílio figuras da estirpe de um Boris Berezovski. Moral da história, há oligarcas bons e oligarcas maus. Russos no Chipre é logo de desconfiar.
 
PS2. Há paraísos ficais maus e paraísos fiscais bons. Luxemburgo e Letónia são para acarinhar; Chipre é para abater. Mesmo que, em matéria de transparência, a pequena ilha do Mediterrâneo peça meças aos outros. E até à Alemanha.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Louçã e o Manifesto



Vem tudo isto a propósito do comentário de Francisco Louçã, na SIC Notícias, e de um manifesto por mudanças de fundo num sistema político cristalizado.
O antigo coordenador do Bloco de Esquerda entregou-se a um exercício de desclassificação dos subscritores daquele manifesto, uma técnica clássica quando o que se pretende é evitar a discussão substantiva das propostas. Os seus autores não seriam pois dignos de crédito; uns porque oriundos do Estado Novo, outros porque foram expressão do omnipresente bloco central.
E o tom foi este, as propostas a merecerem-lhe apenas breves considerações de olímpico desprezo. Listas de independentes à Assembleia da República? Em teoria até sim, mas cuidado com esses independentes trânsfugas, presas fáceis de uma qualquer máfia. Círculos uninominais? Seriam o Cavalo-de-Tróia do caciquismo e demais práticas de cooptação do deputado, que se quer acima de tudo em reverência ao chefe partidário. Primárias nos partidos? Aqui-d’el-rei que vêm aí os acólitos do Menezes votar em força nas eleições do CDS! Referendo? Mas que ignorância a dos autores do manifesto, que não sabem que a Constituição não permite tais veleidades! E na sacrossanta Constituição da República não se toca.
Nada de novo. Louçã é um homem da esquerda portuguesa, cujo pensamento ideológico foi moldado pelas práticas políticas dos anos 70. E aí, o partido, por minúsculo que fosse, era tudo.
Salazar dizia-nos que não estávamos preparados para a democracia e que os comunistas acabariam por tomar conta de tudo. Louçã diz-nos que não estamos preparados para exercer a democracia fora das baias dos partidos. Ou não fosse um dirigente partidário com muitos anos disto.
Nos vários domínios da existência, não raro sou prisioneiro de ilusões. E o Bloco de Esquerda foi uma delas. Sentia-o mais movimento e menos partido. Que ia no sentido de uma cada vez maior abertura à sociedade. Era esse o olhar da minha condição de simpatizante da causa.
A realidade mostrou-me algo de muito diferente: hoje o BE é um partido cada vez mais fechado sobre si mesmo. Em torno de um aparelho risível formado pelas sobras da UDP e do PSR. Percebe-se porquê.
Os pais fundadores da nossa Constituição de Abril decidiram tudo depositar nos partidos. Deram-lhes o monopólio da democracia, pouco ou nada sobrando para os cidadãos. E Louçã gosta das coisas assim.
PS. Não interpretem isto como um apelo à extinção dos partidos, apenas sinto que estes são cada vez mais incapazes de produzir lideranças e quadros capazes para fazer face ao tempo da crise. Sim, não há democracia sem partidos. Mas a democracia também precisas de outras coisas mais.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Esferas

                                                 Norman Mc Laren - Esferas (1969).

Impressões ou umas quantas trivialidades sobre a morte de Chávez

Quando falamos de Chávez, vem-me sempre à memória aquele dia feito de golpe de estado malogrado. Golpe orquestrado por uma democrática oposição, amiga do velho rotativismo oligo-democrático de Carlos Andrés Pérez e cia, e que agora tinha de se haver com um intruso parvenu. Percebeu que, via eleições, o intruso seria um osso bem duro de roer, e então resolveu fazer uso de militares amigos. Mas os tempos eram feitos de mudança: a guerra fria havia terminado, e os americanos, ocupados com outros afazeres bem mais interessantes, não se empenharam a fundo nessa nobre e democrática tarefa. Os desvalidos, esses, reviam-se em Chávez. Sentiam-se por uma vez portadores de uma qualquer  vontade de poder e, assim, tomaram as ruas de Caracas, resgatando o presidente eleito.
Desde esse dia, ao ver essas imagens na televisão, entrevi que estávamos perante um daqueles fenómenos políticos com que, de tempos a tempos, a América Latina nos brinda. E que iria ter longa vida no poder. E foram catorze anos de muitas eleições,com plebiscitos pelo meio, e de grandes mudanças sociais  nesse país, a Venezuela, rica em petróleo, mas paupérrima em bem-estar. Com Chávez, os cuidados primários de saúde chegaram até muitos antes deles desprovidos. E a mortalidade infantil recuou para metade. A pobreza diminuiu significativamente, embora ainda seja uma marca da paisagem social. E muitos tiveram pela primeira vez acesso à educação. Acima de tudo, penso que o maior legado de Chávez é ter trazido para a cidadania democrática tantos que dela estavam excluídos.
É certo, houve  o lastro de populismo e a (velha) tentação de se perpetuar no poder. Mas esse populismo também deve ser contextualizado, compreendido dentro das realidade político-culturais da América Latina,  e no facto de não haver um partido estruturado a mediar a relação entre os apoiantes e o líder (o esboço de partido veio depois). E, com isto termino as minhas trivialidades, acreditando que uma qualquer espécie de chavismo perdurará para além de Chávez. Tal como o peronismo não soçobrou com a morte de Juan e Eva.
Chávez foi o detonador da vaga de esquerda na América Latina.Uma vaga democrática.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Coisas das eleições italianas

Mais uma vez, a notícia da morte de  Silvio Berlusconi, cantada por uma legião sem-fim de jornalistas, foi manifestamente exagerada. Forte é a tentação de tomarmos os nossos desejos pela realidade, depois somos apanhados em contra-pé pelo fenómeno Berlusconi.
Nas nossas democracias, a realidade dos reality shows televisivos entrelaça-se cada vez mais com a política. O tempo é cada vez mais dos que são hábeis a transpor as lógicas da televisão, da televisão do entretenimento (mais o seu cortejo de tele-lixo), para o discurso político. Prejuízo óbvio para a qualidade da democracia, mas é cada vez mais assim o nosso mundo. E Berlusconi, apoiado no seu poderoso império mediático, está aí como peixe na água. Desde 1994, quando então emergiu na vida política italiana  e trocou as voltas aos ex-comunistas do Partido Democrático. Agora tal não sucedeu, mas por muito pouco:na Câmara Baixa, estreita foi a vantagem de Bersani, secretário-geral  do PD, em relação ao Povo da Liberdade de Berlusconi; e no Senado, a vantagem tende para este último.
Para além da demagogia, muito deste resultado de Berlusconi  também se deve à retórica anti-alemã e à forma hábil como se conseguiu demarcar da política de austeridade vigente, cujo rosto, o honesto tecnocrata Mário Monti, figura incensada por comentadores e jornalistas de referência, foi copiosamente derrotado. Os italianos rejeitaram nas urnas a política de austeridade da Comissão Europeia via  Monti.
Quanto ao Partido de Democrático de Bersani, foi incapaz de se apresentar como alternativa à receita da austeridade acima de tudo e  de todos. Incapaz de, parafraseando Moreti,  dizer uma só coisa de esquerda. E acabou tendo uma vitória de Pirro.
Notícia  foi o comediante Beppe Grillo, curiosamente vindo também do mundo da televisão, mas excluído desta. Apelidado de populista pelos comentadores de referência, o seu Movimento 5 Estrelas (MS5) elegeu a internet como plataforma de acção política. Apresentou candidatos muito jovens, quais anónimos da  política, mas granjeou um quarto do voto popular. Por cá, haverá certamente a tentação de o comparar  ao nosso Bloco de Esquerda. Comparação precipitada, pois o jovem  movimento de Grillo  acumula já experiência de governo local (por exemplo, na Sicília ou em Parma), ao contrário do nosso BE, que foge do poder como o diabo da cruz.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O amor é um Prémio sem Mérito

O Amor é um Prémio sem Mérito.O amor é, por definição, um prémio sem mérito. Se uma mulher me diz: eu amo-te porque tu és inteligente, porque és uma pessoa decente, porque me dás presentes, porque não andas atrás de outras mulheres, porque sabes cozinhar, então eu fico desapontado. É muito melhor ouvir: eu sou louca por ti embora nem sejas inteligente nem uma pessoa decente, embora sejas um mentiroso, um egoísta e um canalha.

Milan Kundera, in "A Lentidão"

Bárbara


Fui ver Bárbara, filme de uma rara sensibilidade nos dias que correm. Conciso nos diálogos, mas carregado de sentido.
História de uma médica de Berlim-leste exilada no seu próprio país; numa remota povoação das margens do Báltico.
A beleza, por vezes agreste, da paisagem contrasta com a atmosfera social, que é sufocante, culpa da crueldade e perversão de um regime insano, o da antiga RDA. Mas a humanidade das personagens, a cumplicidade que se entretece para além dos papéis sociais, é tocante. E é uma forma de resistência. É nos interstícios do poder que jaz a possibilidade da utopia. No plano micro das relações humanas que escapam às lógicas do poder.
Mas não há sombra de maniqueísmo neste filme que abraça a complexidade das coisas. E fá-lo de uma forma simples, por meio de uma eficaz narrativa.
Excelente a interpretação de Nina Hoss (uma grande actriz!). E que fotografia tão sedutora, que cores! Está de volta o bom cinema alemão

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

FMI e privilegiados

O país foi acometido de um súbito estado de euforia com o (épico) regresso aos mercados. 
Comunicação social e demais especialistas do governo já profetizam o fim da crise ao virar da próxima esquina.
Parece esquecido o famigerado relatório do FMI, cujos peritos preconizam mais umas quantas dezenas de milhares de despedimentos, num país onde o desemprego teima em escapar às previsões dos tais especialistas que sabem qualquer cousa de uma cousa e nada de todas as coisas, como dizia o poeta.
No dizer dos especialistas das médias, medianas e pesos do PIB, um médico ou um professor são profissões a cuja situação de privilégio importa pôr cobro. Compreende-se que, no aconchego dos gabinetes climatizados, seja difícil entrever a vida de um professor obrigado a carregar a casa às costas ano após ano, rumo à escola onde foi colocado pelo omnipresente Ministério da Educação. O mesmo ministério que afoga os professores em burocracias, sobrando pouco tempo para a nobre tarefa de preparação das aulas. Não é caso para menos: a realidade assume tons bem mais agradáveis, quando vista pelas cores garridas ou curvas voluptuosas dos gráficos de excel.
Estes especialistas são  remunerados a peso de ouro, ao contrário do professor que ensina; ou do médico que trata os doentes. Mas, na narrativa que todos os dias entra pelas nossa casas adentro, são estes últimos os privilegiados. É assim o nosso mundo às avessas.