quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Para onde vais, Esquerda?

À esquerda, os tempos foram marcados por uma convenção e um congresso. Em ambos, os mesmos rituais de auto-satisfação. Diríamos que os militantes, de uma e outra formação, estão a viver no melhor dos mundos. Apesar da crise. Ou, melhor, por causa desta. Porque da crise esperam votos de descontentamento e, no fim do caminho, a revolução social. Não é preciso pois mudar, porque no esperar é que está o ganho.

Os da convenção persistiram em ignorar um resultado eleitoral por demais desastroso, refugiando-se na crença da preservação do núcleo original de eleitores, espécie de código genético desta formação política. E assim experimentaram uma liderança bicéfala em pleno olho do furação. Liderança bicéfala proposta pelo coordenador de saída e depressa aclamada pela imensa maioria dos seus militantes, em gesto certamente democrático. A fé de ser Syriza parece bastar-lhes. Doce ilusão.

Os do congresso têm o marxismo-leninismo, e isso basta-lhes em matéria de grelha de leitura da realidade circundante e de teleologia.
Expressão cunhada depois da morte de Lenine, o marxismo-leninismo foi a ideologia que deu forma ao Estado Soviético sob a égide de José Estaline. E hoje, muito tempo depois desses anos trágicos da história da Rússia, e já não havendo União Soviética, continua a ser bússola do Partido Comunista Português. Os seus militantes imaginam-se vanguarda (espelho meu, espelho meu, diz-me lá se há alguém mais revolucionário do que eu?), mas o que vem à tona é só burocracia e funcionalismo. 

Neste admirável mundo novo do PC, a liberdade rima com servidão. E a revolução é permanência imune às mutações do real. Fora das muralhas de aço deste mundo, é só negrume e logro. Traduzindo, há a direita, o PS partido do memorando e o BE de cariz social-democratizante. No meio desta imensidão de irrecuperáveis, o PC sonha encontrar os democratas do Preste João, e com eles formar a santa-aliança que nos guiará a todos rumo ao futuro radioso.

E é para este PC que os da convenção olham não sem fascínio. Gostariam de ser os depositários de tanta pureza e arregimentar assim o mundo sindical e do trabalho. Agora, sempre que discursam, o fundo do palco é vermelho. Longe vão pois os tempos de um BE a várias cores. Culpa da crise financeira, dirão alguns.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A greve e o país do sol nascente

Não estive nas manifestações do dia da greve. O dia foi pontuado com outros afazeres, que não os do trabalho (confesso ter aderido à paralisação). E só de longe espreitei as imagens televisivas da violência em São Bento e  imediações. Da violência dos manifestantes e da polícia. Uma luta desigual, já se sabia, e inconsequente. Mas acabou por dar um tom europeu ao protesto de 14 de Dezembro.
Se das imagens pouco vi, dos comentadores do costume livrei-me de boa porque fui ao cinema, arrastado por uma história do país do sol nascente. Uma história de um clã amaldiçoado, os Nakamoto do beco. Homens de grande beleza, incorrigíveis sedutores, condenados a morrer jovens. Uns às mãos do ciúme, das mulheres ou dos maridos destas. Outros pondo cobro à sua própria vida. Outros ainda vítimas da sua condição social.
Pela tela, as estórias de três Nakamotos. São-nos contadas pela voz da parteira, a anciã da aldeia. Uma aldeia à beira-mar; o horizonte era só o mar a serpentear colinas de densas florestas. Uma forte corrente erótica percorre estas estórias marcadas pelo fatalismo. Marca o ritmo do filme.
A tragédia dos Nakamotos parece ancorada num destino remoto. Talvez no desígnio dos deuses (no início temos a imagem do local sagrado onde  a deusa da floresta deu à luz o fogo).  Essa é uma ilusão que o realizador Koji Wakamatsu se encarrega de desfazer. O filme termina com uma canção que nos fala-nos da proclamação do imperador Meiji, do desejo democrático de abolir  todas a formas de discriminação com origem no nascimento. Mas a discriminação persistiu, e os Nakamotos continuaram  vítimas de um trágico destino social. Morriam cedo, mas muitos mais eram paridos, assim dizia a canção. Porque  se a vida é sofrimento, é também um impulso maior.
Koji Wakamatsu conheceu em vida a pobreza e a discriminação.  O seu cinema é fortemente implicado, imbuído de mensagens políticas e sociais. Por isso, acho que  Koji Wakamatsu rimou com a greve de 14 de Dezembro.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A doce perfeição e a queda

Acreditamos em soluções perfeitas para os problemas que nos afligem, eis o nosso logro. Reféns da ideia de perfeição, lançamos o anátema sobre as restantes alternativas e a discussão acaba em mero simulacro.
Resultado de tal atitude é  assistirmos, paralisados, à nossa própria queda. Retrato de um país cada vez mais submerso numa crise sem fim à vista. Com um primeiro-ministro obstinadamente agarrado à ideia de que temos de honrar os nossos compromissos custe o que custar; e nos termos de um memorando que a realidade depressa se encarregou de tornar caduco.
Pagar tudo e não nada renegociar  é o dever ser contra o ser. Mas o que tem que ser tem muita força. E o ser é o fardo da dívida tornada ingerível pela queda do PIB. O tempo deveria ser, pois, o da discussão das outras alternativas. Das imperfeitas, que comportam custos e riscos. Mas não: continuaremos deliciosamente aprisionados pelo feitiço da perfeição. Até que a realidade nos bata à porta.


PS. Em Pedro Passos Coelho e Angela Merkel, o mesmo retrato de um país cumpridor e no bom caminho. Nada urge pois alterar. Mas o que em Pedro é crença, é ,em Angela, mero cálculo político, que as eleições estão já ao virar da esquina. E nada como a imagem da chanceler ladeada por dois belos canhões prussianos, no não menos belo  Forte de São Julião da Barra.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Vitória de Obama

Foi uma dura batalha esta eleição presidencial, com a vitória de Barack Hussein Obama a ser obtida por escassa margem. Nos Estados decisivos, que há muito são o fiel da balança em eleições presidenciais, casos do Ohio ou da Virgínia, somente dois a três pontos percentuais separaram o vencedor do candidato derrotado. E Barack Obama venceu todas estas batalhas (só a Flórida aguarda ainda o veredicto). Resultado, vantagem clara no número de grandes eleitores e a maioria do voto popular (não é de somenos sublinhar este facto, não obstante se tratar de uma eleição indirecta em que o colégio eleitoral designa o Presidente).
Obama desiludiu muitos nestes quatro anos do primeiro mandato. Muitos esperavam tanto desta presidência, mas as circunstâncias eram assaz adversas. Diríamos, terríveis, pois estávamos, e ainda estamos, no meio da pior crise económica desde a Grande Depressão dos anos trinta. Mas imaginem o que poderiam ter sido esses anos com um presidente republicano? Os efeitos da crise, acreditem, teriam sido ainda mais devastadores, não fora a acção do presidente agora reeleito. Exemplos? Sem a política de estímulos económicos à indústria, em particular à automóvel, o desemprego teria sido certamente maior. Obama recusou a austeridade ancorada em ortodoxias infelizmente tão em voga na Europa, e orientou-se para o crescimento e o emprego.
Mais importante, conseguiu aprovar, apesar da dura oposição dos republicanos, a reforma da saúde, passo decisivo rumo a um sistema de cobertura universal. E não hesitou em apoiar os movimentos da Primavera Árabe.
Fosse Barack Obama um político cinzento desses que povoam as nossas televisões, e teria sido arrastado na tormenta económica. Não há memória, desde Franklin D. Roosevelt, de um presidente ter sido reeleito havendo tantos americanos desempregados. É um feito que não está ao alcance de muitos.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

D’ Est



No dealbar dos anos 90, a cineasta belga Chantal Akerman fez-se à estrada rumo ao Leste, a essa terra de utopias soçobradas. A Perestroika tinha então possibilitado a realização de um projecto há muito adiado, o de filmar o quotidiano das sociedades do Leste.
Perpassam fugazes imagens da Alemanha Oriental e da Polónia, depois paramos na União Soviética, ou talvez na Mãe Rússia; na verdade, estas imagens bem podem pertencer ao tempo em que ainda havia União Soviética (Akerman filmou entre 1990 e 93), não sabemos o que é de antes e o que é de depois.
D’ Est é uma experiência sensorial do espaço e do tempo, deixamo-nos impregnar pela força das imagens e somos transportados para outra realidade. Congelada no tempo, no tempo do Socialismo Real.
Akerman filma admiravelmente esse quotidiano, pessoas que passam, rostos esfíngicos que esperam pacientemente e, a mais das vezes, indiferentes à câmara (a discrição da câmara é um dos trunfos deste documentário feito estranheza). Há uma grande dignidade no olhar destas pessoas que esperam em longas filas. A cineasta espreita também o espaço íntimo do lar: a cozinha, e nela uma mulher a cortar o pão; a sala de estar onde uma outra mulher põe um vinil num velho gira-discos. O disco salta, cheio daquele ruído familiar do vinil cuja faixa foi tocada vezes sem conta. Emerge uma comovente balada russa.
D’ Est traz-nos imagens quase só da noite, do Inverno, talvez por isso noite. E isso confere-lhe uma dimensão crepuscular.  Akerman filma o crepúsculo da Utopia.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A Grécia que eles odeiam

À violência de um governo ilegítimo junta-se a corte ignara dos comentaristas que nos dizem que não há alternativa à austeridade a não ser a Grécia.
Não sei o que mais me revolta, se a falta de pudor com que um governo se lança sobre os rendimentos de quem trabalha e dos pensionistas, fazendo o contrário do que pregou na campanha eleitoral, se a indigência dos comentários sobre um país transformado em bode expiatório da crise do euro. E a cujos cidadãos se pode impor uma receita económica feita à base de dor e sofrimento. Essas luminárias falam da Grécia com desprezo. Com o desprezo próprio dos ignorantes.  
No fundo, eles agitam o espectro da Grécia contra nós. Querem-nos assim obedientes, em humilde reverência do discurso do especialista. Não gostam do ruído do mundo, da cidadania e da democracia. Afinal, esta é a impureza que ameaça fazer ruir o imaculado conhecimento tecnocrático.
A Grécia é o escrutínio dos governos. É a rua. É as greves. É o Syriza. É Exarquia. É a política! E eles, no seu mundo asséptico das televisões, odeiam tudo isso.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Lobo e o Cordeiro. Da opressão e da inocência

 Ao mesmo rio vieram, compelidos pela sede, o lobo e o cordeiro.

O lobo estava mais acima e o cordeiro bem mais abaixo. Então o predador, incitado por sua goela maldosa, encontrou motivo de rixa: “Estou a beber e tu poluis a água!”.

O lanoso, tímido, responde:
“Como posso fazer isso de que te queixas, ó lobo? De ti para a minha garganta é que o liquido corre”.

Repelido pela força da verdade, ele replicou:
“Cerca de seis meses atrás, falaste mal de mim”.

O cordeiro retruca: “Eu? Então eu sequer era nascido…”.
- Por Hércules!, teu pai é que me destratou!

Em seguida, dilacera a presa, dando-lhe morte injusta.
 
Escrevi esta fábula por causa daqueles indivíduos que oprimem os inocentes por razões fictícias.

Fedro

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Dentro de nós

Dentro de nós, as coisas aparecem como pontos de luz no fundo de nevoeiro e sombra. A nossa realidade concreta possui uma qualidade abstracta fantasmagórica.
M. Antonioni

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Outra vez Antonioni: o Eclipse


5 de Outubro

O mesmo dia, 5 de Outubro, um ano depois.
Não, não é um texto sobre a República e tão-pouco sobre um feriado embargado pelo governo dos especialistas. São memórias de um passado recente, ou talvez tão-só coisas da experiência sensorial.
Sim, naquela noite de 5 Outubro do ano passado, bem pela noite dentro, irrompeu subitamente a esperança. Durou pouco, mas por uns breves instantes  fez-se matéria do real. Podia senti-la, tocá-la, cheirá-la...
A esperança ficou cá para nos reconfortar, é assim desde a Pandora. E é irresistível.
Ecos desse 5 de Outubro fizeram-se ouvir agora, no feriado que não vai voltar a ser. Mas a realidade, essa, é cada vez mais cinzenta.

sábado, 6 de outubro de 2012

On Your Own Again

Wasn't it a good year
Wasn't filled with talking
It still moves through my heart
From time to time
City after city
Granite gray as morning
Heroes died in subways left behind
far behind like our love
You're on your own again
And you're your best again
That's what you tell yourself
I see it all the way as far as anyone can see
Except when it began I was so happy I didn't feel like me.

Scott Walker - Scott 4

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Expropriação da cidadania

Estimulante artigo do escritor alemão Hans Magnus Enzensberger, no El Pais, sobre o processo de expropriação política de que estão a ser alvo os cidadãos da União Europeia. Da ladainha da culpa que é a nossa, por termos vivido acima das nossas possibilidades, até ao mantra de que não há alternativa à austeridade ministrada por comités de especialistas acima de qualquer escrutínio.

Destaco alguns excertos:

 Evidentemente, son los menos quienes reparan en que los países europeos, desde hace bastante tiempo, ya no son regidos por instituciones legitimadas democráticamente, sino por una serie de abreviaturas que las han suplantado. Sobre la dirección a tomar deciden el FEEF, el MEDE, el BCE, la ABA o el FMI.

Parece fantasmal con qué tranquilidad los habitantes de nuestro pequeño continente han aceptado su expropiación política. Quizá eso se deba a que estamos ante una novedad histórica. En contraste con las revoluciones, golpes de Estado y asonadas militares en las que es rica la historia europea, ahora las cosas suceden sin ruido ni violencia. En eso estriba la originalidad de este asalto al poder. ¡Ni marchas con antorchas, ni desfiles, ni barricadas, ni tanques! Todo se desarrolla pacíficamente en la trastienda.

Estos miembros se autodesignan, igual que en el antiguo régimen colonial, como gobernadores y, al igual que los directores, no tienen que rendir cuenta alguna frente a la opinión pública. Al contrario, están expresamente obligados a mantener el secreto. Esto recuerda a la omertà, que forma parte del código de honor de la mafia. Nuestros padrinos se sustraen a cualquier control judicial o legal. Gozan de un privilegio que ni siquiera está al alcance de un jefe de la Camorra: la absoluta inmunidad frente al Derecho Penal. (Eso es lo que se dispone en los artículos 32 a 35 del Tratado del MEDE).

Mefistófeles e a inflação.

Fui dar com este artigo do (famoso) colunista do Financial Times, Wolfgam Munchau, que contém uma curiosa citação do governador do Bundesbank, Jens Weidmann. Curiosa porque nos remete para o Fausto de Goethe.

Afinal, o medo da inflação não está apenas enraizado na experiência histórica alemã dos trágicos anos trinta. Também a grande literatura faz dele eco. E, assim, Weidmann recorda o diálogo de Mefistófeles com o imperador. E o remédio para os males da bancarrota que assola o império: uma simples nota de papel com a assinatura do imperador; o império entregou-se à tarefa de as imprimir aos milhares e por uns tempos a vida continuou a ser como dantes. Para contentamento do povo.
Para Weidamen, o italiano Mario  Draghi é o Mefistófeles na corte do império do Euro.

MEFISTÓFELES:

A minha viagem deu p'ra notar

Que está em apuros o bom do imperador. Já o conheces. Quando o divertíamos,
Falsas riquezas na mão lhe metíamos,
Pensava que o mundo era seu.
(...)
FAUSTO:
Erro fatal.
(...)
MEFISTÓFELES:
(...)Gozou como podia,
E agora o reino caiu na anarquia:
Grandes, pequenos, todos guerreando,
Irmãos perseguindo-se, matando,
Atacam-se castelos e cidades,
Guildas e nobres em luta, inimizades,
Bispo, povo e cabido desavindos,
Olham-se e pronto!, já são inimigos.
'Té nas igrejas morres, e diante
Das porras corre risco o viajante.
Cada um mais ousado se mostrava;
Viver? Não, defender-se! - E a coisa andava.
JOHANN WOLFGANG GOETHE – in “FAUSTO”