terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Coisas das eleições italianas

Mais uma vez, a notícia da morte de  Silvio Berlusconi, cantada por uma legião sem-fim de jornalistas, foi manifestamente exagerada. Forte é a tentação de tomarmos os nossos desejos pela realidade, depois somos apanhados em contra-pé pelo fenómeno Berlusconi.
Nas nossas democracias, a realidade dos reality shows televisivos entrelaça-se cada vez mais com a política. O tempo é cada vez mais dos que são hábeis a transpor as lógicas da televisão, da televisão do entretenimento (mais o seu cortejo de tele-lixo), para o discurso político. Prejuízo óbvio para a qualidade da democracia, mas é cada vez mais assim o nosso mundo. E Berlusconi, apoiado no seu poderoso império mediático, está aí como peixe na água. Desde 1994, quando então emergiu na vida política italiana  e trocou as voltas aos ex-comunistas do Partido Democrático. Agora tal não sucedeu, mas por muito pouco:na Câmara Baixa, estreita foi a vantagem de Bersani, secretário-geral  do PD, em relação ao Povo da Liberdade de Berlusconi; e no Senado, a vantagem tende para este último.
Para além da demagogia, muito deste resultado de Berlusconi  também se deve à retórica anti-alemã e à forma hábil como se conseguiu demarcar da política de austeridade vigente, cujo rosto, o honesto tecnocrata Mário Monti, figura incensada por comentadores e jornalistas de referência, foi copiosamente derrotado. Os italianos rejeitaram nas urnas a política de austeridade da Comissão Europeia via  Monti.
Quanto ao Partido de Democrático de Bersani, foi incapaz de se apresentar como alternativa à receita da austeridade acima de tudo e  de todos. Incapaz de, parafraseando Moreti,  dizer uma só coisa de esquerda. E acabou tendo uma vitória de Pirro.
Notícia  foi o comediante Beppe Grillo, curiosamente vindo também do mundo da televisão, mas excluído desta. Apelidado de populista pelos comentadores de referência, o seu Movimento 5 Estrelas (MS5) elegeu a internet como plataforma de acção política. Apresentou candidatos muito jovens, quais anónimos da  política, mas granjeou um quarto do voto popular. Por cá, haverá certamente a tentação de o comparar  ao nosso Bloco de Esquerda. Comparação precipitada, pois o jovem  movimento de Grillo  acumula já experiência de governo local (por exemplo, na Sicília ou em Parma), ao contrário do nosso BE, que foge do poder como o diabo da cruz.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O amor é um Prémio sem Mérito

O Amor é um Prémio sem Mérito.O amor é, por definição, um prémio sem mérito. Se uma mulher me diz: eu amo-te porque tu és inteligente, porque és uma pessoa decente, porque me dás presentes, porque não andas atrás de outras mulheres, porque sabes cozinhar, então eu fico desapontado. É muito melhor ouvir: eu sou louca por ti embora nem sejas inteligente nem uma pessoa decente, embora sejas um mentiroso, um egoísta e um canalha.

Milan Kundera, in "A Lentidão"

Bárbara


Fui ver Bárbara, filme de uma rara sensibilidade nos dias que correm. Conciso nos diálogos, mas carregado de sentido.
História de uma médica de Berlim-leste exilada no seu próprio país; numa remota povoação das margens do Báltico.
A beleza, por vezes agreste, da paisagem contrasta com a atmosfera social, que é sufocante, culpa da crueldade e perversão de um regime insano, o da antiga RDA. Mas a humanidade das personagens, a cumplicidade que se entretece para além dos papéis sociais, é tocante. E é uma forma de resistência. É nos interstícios do poder que jaz a possibilidade da utopia. No plano micro das relações humanas que escapam às lógicas do poder.
Mas não há sombra de maniqueísmo neste filme que abraça a complexidade das coisas. E fá-lo de uma forma simples, por meio de uma eficaz narrativa.
Excelente a interpretação de Nina Hoss (uma grande actriz!). E que fotografia tão sedutora, que cores! Está de volta o bom cinema alemão

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

FMI e privilegiados

O país foi acometido de um súbito estado de euforia com o (épico) regresso aos mercados. 
Comunicação social e demais especialistas do governo já profetizam o fim da crise ao virar da próxima esquina.
Parece esquecido o famigerado relatório do FMI, cujos peritos preconizam mais umas quantas dezenas de milhares de despedimentos, num país onde o desemprego teima em escapar às previsões dos tais especialistas que sabem qualquer cousa de uma cousa e nada de todas as coisas, como dizia o poeta.
No dizer dos especialistas das médias, medianas e pesos do PIB, um médico ou um professor são profissões a cuja situação de privilégio importa pôr cobro. Compreende-se que, no aconchego dos gabinetes climatizados, seja difícil entrever a vida de um professor obrigado a carregar a casa às costas ano após ano, rumo à escola onde foi colocado pelo omnipresente Ministério da Educação. O mesmo ministério que afoga os professores em burocracias, sobrando pouco tempo para a nobre tarefa de preparação das aulas. Não é caso para menos: a realidade assume tons bem mais agradáveis, quando vista pelas cores garridas ou curvas voluptuosas dos gráficos de excel.
Estes especialistas são  remunerados a peso de ouro, ao contrário do professor que ensina; ou do médico que trata os doentes. Mas, na narrativa que todos os dias entra pelas nossa casas adentro, são estes últimos os privilegiados. É assim o nosso mundo às avessas.