terça-feira, 17 de setembro de 2013

Servidão e desajustamento

A nossa civilização asfixia-nos cada vez mais nos estreitos limites da condição de empreendedor ou de colaborador, para empregar duas expressões da novilíngua reinante. 

As categorias empreendedor e colaborador remetem-nos para um mundo asséptico; sem conflitos, sem interesses em oposição. 
De pouco importa clamar que a desigualdade impera, neste mundo de empreendedores e colaboradores. Que muitos poucos têm cada vez mais e que, aos restantes, sobra cada vez menos. Porque também isso foi absorvido pelo duplo-pensar orwelliano, em mentes cativas do discurso dominante.
O pensamento fica assim refém de um léxico empobrecido,a ele se resumindo. Um léxico onde imperam palavras como ajustamento, crescimento, reformas estruturais, entre outras.

Mas a pulsão asfixiante da civilização ocidental é bem anterior a este nosso mundo a caminho de um futuro distópico. 
Também nas primeiras décadas do pós-guerra, nos tempos do contrato social entre capital e trabalho e da repartição  mais ou menos justa da riqueza produzida, ela se manifestava. Desajustamento, infelicidade, desejo de evasão de um mundo conformista, submetido ao primado da produção, do trabalho e do consumo. Em que o ter é tudo e o ser nada.

Pressente-se isso nos Nove Contos (Nine Stories no original) de J.D.Salinger, uma das minhas leituras do Verão. Em contos como Um dia ideal para o peixe-banana, onde a imaginação é uma resposta ao desajustamento, à sociedade mais as suas regras e futilidades, esvaziadas de sentido perante a inocência, a nostalgia mágica da infância. Um conto desarmante, comovente e trágico.

"..'Sibila,sabes o que vamos fazer? Vamos ver se apanhamos um peixe-banana."
"Um quê?"
"Um peixe-banana", disse ele".  [...]
"Não vejo nenhum", disse Sibila.
"Isso é natural. É um peixe com hábitos muito estranhos, mesmo muito estranhos."
Ela abanou a cabeça
"Entram a nadar para dentro de um qualquer buraco que esteja cheio de bananas. À entrada são peixes vulgares, iguais aos outros, mas uma vez dentro do buraco, portam-se como porcos. Sei de alguns peixes-banana que chegaram a comer setenta e oito bananas" [...]
"Depois não conseguem sair do buraco."
J.D.Salinger - Nove Contos

Também na entrevista dada ao Público, o cineasta Victor Erice vai no mesmo sentido:

"Creio que as crianças encarnam nos meus filmes uma certa forma de rebeldia. Mais do quer modificar o meu olhar, transcenderam-no. Sempre me  interessaram as crianças que são verdadeiramente  crianças e não uma cópia prematura dos adultos. O que mais me comove nelas é o seu carácter selvagem, a sua capacidade de resistência face à desgraça, o uso que fazem da imaginação. Definitivamente, a sua capacidade de virar do avesso esse simulacro de vida que a sociedade tece ao seu redor e que chamamos de realidade."
Público, 13-09-13.


Nenhum comentário:

Postar um comentário