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Uma heroína da BD. Francesa e de esquerda, a combater a ocupação alemã. Da obra de Gibrat, O Voo do Corvo. |
Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Clarice Lispector
quarta-feira, 27 de março de 2013
Estórias da Resistência
Chipre e a lei do mais forte.
Muda-se
o ser, muda-se a confiança. E Chipre passou de modelo deste nosso
capitalismo globalizado, hábil actor na contenda pela atracção dos
capitais financeiros, a lavandaria da Europa. A lavandaria do dinheiro
sujo que vem do Leste, da Rússia de Putin.
Os arautos do capitalismo globalizado sem freios exaltavam
este mundo feito de livre-concorrência, única medida do universo.
Impunha-se saber atrair estes fluxos financeiros, pouco importando de
onde provinham, porque, afinal de contas, dinheiro é dinheiro e
escrúpulos não são para aqui chamados; a não ser enquanto expressão de atraso e imobilismo, afinal de contas, eles, os neoliberais, são amorais
por excelência.
Com
a crise, o dinheiro voltou a ser um bem escasso, tal é sentido com
particular agudeza na nossa Europa, onde a competição se tornou brutal. E o pequeno Chipre, a braços com bancos afogados em títulos da
dívida pública grega entretanto reestruturada, viu ser-lhe quebrada a
espinha dorsal do seu sistema financeiro e, já agora, da sua economia.
Não houve contemplações por parte da Europa, melhor dizendo, da Alemanha. Como o
predador que se abate sobre a presa já debilitada, dando-lhe o golpe de misericórdia.
É um sinal dado aos investidores: ter o dinheiro na periferia comporta
riscos avultados, depósitos e poupanças poderão ser alvo de um qualquer
confisco. Melhor é mesmo conservar o dinheiro no seio dessas economias
que formam o core business da União Europeia. Como a Alemanha. É a lei do
mais forte, é assim o darwinismo social das nações.
PS. Pelos vistos, só há dinheiro sujo e oligarcas russos em Chipre. Nada disso em Londres, onde se passeiam tranquilamente criaturas como Roman Abramovitch. Ou onde encontraram exílio figuras da estirpe de um Boris Berezovski. Moral da história, há oligarcas bons e oligarcas maus. Russos no Chipre é logo de desconfiar.
PS2.
Há paraísos ficais maus e paraísos fiscais bons. Luxemburgo e Letónia
são para acarinhar; Chipre é para abater. Mesmo que, em matéria de transparência, a pequena ilha do Mediterrâneo peça meças aos outros. E
até à Alemanha.
sexta-feira, 22 de março de 2013
Louçã e o Manifesto
Vem tudo
isto a propósito do comentário de Francisco Louçã, na SIC Notícias, e de um
manifesto por mudanças de fundo num sistema político cristalizado.
O antigo
coordenador do Bloco de Esquerda entregou-se a um exercício de desclassificação
dos subscritores daquele manifesto, uma técnica clássica quando o que se
pretende é evitar a discussão substantiva das propostas. Os seus autores não seriam
pois dignos de crédito; uns porque oriundos do Estado Novo, outros porque foram
expressão do omnipresente bloco central.
E o tom foi
este, as propostas a merecerem-lhe apenas breves considerações de olímpico
desprezo. Listas de independentes à Assembleia da República? Em teoria até sim,
mas cuidado com esses independentes trânsfugas, presas fáceis de uma qualquer
máfia. Círculos uninominais? Seriam o Cavalo-de-Tróia do caciquismo e demais
práticas de cooptação do deputado, que se quer acima de tudo em reverência ao
chefe partidário. Primárias nos partidos? Aqui-d’el-rei que vêm aí os acólitos do Menezes votar em força nas
eleições do CDS! Referendo? Mas que ignorância a dos autores do manifesto, que
não sabem que a Constituição não
permite tais veleidades! E na sacrossanta Constituição da República não se
toca.
Nada de
novo. Louçã é um homem da esquerda portuguesa, cujo pensamento ideológico foi
moldado pelas práticas políticas dos anos 70. E aí, o partido, por minúsculo
que fosse, era tudo.
Salazar
dizia-nos que não estávamos preparados para a democracia e que os comunistas acabariam
por tomar conta de tudo. Louçã diz-nos que não estamos preparados para exercer
a democracia fora das baias dos partidos. Ou não fosse um dirigente partidário
com muitos anos disto.
Nos vários domínios
da existência, não raro sou prisioneiro de ilusões. E o Bloco de Esquerda foi
uma delas. Sentia-o mais movimento e menos partido. Que ia no sentido de uma
cada vez maior abertura à sociedade. Era esse o olhar da minha condição de
simpatizante da causa.
A realidade
mostrou-me algo de muito diferente: hoje o BE
é um partido cada vez mais fechado sobre si mesmo. Em torno de um aparelho
risível formado pelas sobras da UDP e do PSR. Percebe-se porquê.
Os pais
fundadores da nossa Constituição de Abril
decidiram tudo depositar nos partidos. Deram-lhes o monopólio da democracia,
pouco ou nada sobrando para os cidadãos. E Louçã gosta das coisas assim.
PS. Não
interpretem isto como um apelo à extinção dos partidos, apenas sinto que estes
são cada vez mais incapazes de produzir lideranças e quadros capazes para fazer
face ao tempo da crise. Sim, não há democracia sem partidos. Mas a democracia
também precisas de outras coisas mais.
quarta-feira, 6 de março de 2013
Impressões ou umas quantas trivialidades sobre a morte de Chávez
Quando falamos de Chávez, vem-me sempre à memória aquele dia feito de
golpe de estado malogrado. Golpe orquestrado por uma democrática
oposição, amiga do velho rotativismo oligo-democrático de Carlos Andrés Pérez
e cia, e que agora tinha de se haver com um intruso parvenu. Percebeu
que, via eleições, o intruso seria um osso bem duro de roer, e então
resolveu fazer uso de militares amigos. Mas os tempos eram feitos de
mudança: a guerra fria havia terminado, e os americanos, ocupados com
outros afazeres bem mais interessantes, não se empenharam a fundo nessa
nobre e democrática tarefa. Os desvalidos, esses, reviam-se em Chávez.
Sentiam-se por uma vez portadores de uma qualquer vontade de poder e,
assim, tomaram as ruas de Caracas, resgatando o presidente eleito.
Desde esse dia, ao ver essas imagens na televisão, entrevi que estávamos perante um daqueles fenómenos políticos com que, de tempos a tempos, a América Latina nos brinda. E que iria ter longa vida no poder. E foram catorze anos de muitas eleições,com plebiscitos pelo meio, e de grandes mudanças sociais nesse país, a Venezuela, rica em petróleo, mas paupérrima em bem-estar. Com Chávez, os cuidados primários de saúde chegaram até muitos antes deles desprovidos. E a mortalidade infantil recuou para metade. A pobreza diminuiu significativamente, embora ainda seja uma marca da paisagem social. E muitos tiveram pela primeira vez acesso à educação. Acima de tudo, penso que o maior legado de Chávez é ter trazido para a cidadania democrática tantos que dela estavam excluídos.
É certo, houve o lastro de populismo e a (velha) tentação de se perpetuar no poder. Mas esse populismo também deve ser contextualizado, compreendido dentro das realidade político-culturais da América Latina, e no facto de não haver um partido estruturado a mediar a relação entre os apoiantes e o líder (o esboço de partido veio depois). E, com isto termino as minhas trivialidades, acreditando que uma qualquer espécie de chavismo perdurará para além de Chávez. Tal como o peronismo não soçobrou com a morte de Juan e Eva.
Chávez foi o detonador da vaga de esquerda na América Latina.Uma vaga democrática.
Desde esse dia, ao ver essas imagens na televisão, entrevi que estávamos perante um daqueles fenómenos políticos com que, de tempos a tempos, a América Latina nos brinda. E que iria ter longa vida no poder. E foram catorze anos de muitas eleições,com plebiscitos pelo meio, e de grandes mudanças sociais nesse país, a Venezuela, rica em petróleo, mas paupérrima em bem-estar. Com Chávez, os cuidados primários de saúde chegaram até muitos antes deles desprovidos. E a mortalidade infantil recuou para metade. A pobreza diminuiu significativamente, embora ainda seja uma marca da paisagem social. E muitos tiveram pela primeira vez acesso à educação. Acima de tudo, penso que o maior legado de Chávez é ter trazido para a cidadania democrática tantos que dela estavam excluídos.
É certo, houve o lastro de populismo e a (velha) tentação de se perpetuar no poder. Mas esse populismo também deve ser contextualizado, compreendido dentro das realidade político-culturais da América Latina, e no facto de não haver um partido estruturado a mediar a relação entre os apoiantes e o líder (o esboço de partido veio depois). E, com isto termino as minhas trivialidades, acreditando que uma qualquer espécie de chavismo perdurará para além de Chávez. Tal como o peronismo não soçobrou com a morte de Juan e Eva.
Chávez foi o detonador da vaga de esquerda na América Latina.Uma vaga democrática.
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