terça-feira, 19 de julho de 2011

Vasily Grossman, Vida e Destino

Vasily Grossman foi um célebre cronista da Grande Guerra Patriótica (assim chamam os russos à II Guerra Mundial) no jornal Estrela Vermelha, órgão oficial do Exército Vermelho.
As suas crónicas eram muito populares entre os soldados e oficiais, porque fiéis à dura realidade da guerra e despidas da retórica propagandística dos então omnipresentes comissários políticos.
Essa experiência do teatro de guerra forjou o romance Vida e Destino, um épico que toma como cenário a Batalha de Estalinegrado. Vida e Destino é um fresco dessa época trágica. É uma anatomia da sociedade estalinista, exposta em toda a sua crueldade e absurdo.
Vasily Grossman foi vítima de opróbrio quando o seu livro viu, ainda que fugazmente, a luz do dia, nesses idos anos sessenta: mesmo em pleno degelo Krutcheviano, as estórias de Grossman eram insuportáveis para o regime. O manuscrito e as notas de Vida e Destino foram apreendidos pelo KGB. E o mesmo destino tiveram as fitas e o químico da máquina de escrever do escritor. Prova de que um romance pode fazer tremer um regime todo-poderoso. Prova da força do pensamento, capaz de escapar às lógicas concentracionárias.
Vida e Destino sobreviveu: chegou ao Ocidente oculto num micro-filme. País da publicação do romance, a Suíça, em 1980.

É difícil, Vitia, compreender realmente os homens... os alemães entraram na cidade no dia 7 de Julho. No parque da cidade, a rádio transmitia as últimas informações; eu vinha da policlínica depois das consultas e parei para escutar, a locutora lia em ucraniano um artigo sobre os últimos combates. Ouvi detonações afastadas, depois alguns homens atravessaram o parque a correr, retomei o caminho de casa perguntando-me como é que não ouvira as sirenes de alerta aéreo. De repente, vi um tanque e uma voz gritou: «os alemães passaram».

[...]

Adormeci de manhãzinha e, quando acordei, senti uma horrível tristeza. Estava no meu quarto, na minha cama, e contudo sentia-me em terra estranha, esquecida, solitária.

Nessa mesma manhã lembraram-me o que tivera tempo de esquecer durante os anos do poder soviético: era judia. Os alemães passavam em camiões e gritavam: «Judeen Kaputt!».

E depois também os vizinhos me lembraram. A mulher do guarda, que estava debaixo da minha janela, dizia a uma vizinha: «Graças a Deus, vamos ver-nos livre destes judeus todos.» Donde virá isto tudo? O filho dela é casado com uma judia e a velha estava em casa do filho; depois falava-me dos netos.

A minha vizinha do prédio, que é viúva, tem uma filha com 6 anos, Alionuchka, uns esplêndidos olhos azuis, já te falei nela numa das cartas, e essa vizinha entrou no meu quarto e disse-me:« Anna Semionovna, peço-lhe que retire as suas coisas do quarto antes do anoitecer, porque eu vou instalar-me lá.»

- Muito bem, nesse caso, eu instalo-me no seu – respondi-lhe eu.

- Não, não, você vai é para a despensa.

[...]

Muitas pessoas espantaram-me. E não foram só criaturas incultas, azedas e limitadas. Por exemplo, um professor reformado, de 75 anos de idade, pergunta-me sempre por ti, e dizia-me de ti: «É o nosso orgulho». Naqueles dias malditos afastou-se de mim na rua e não me cumprimentou. Depois contaram-me que tinha declarado numa reunião do kommandantur:«o ar está mais pura, já não cheira a alho».

In Vida e Destino.


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