quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Marconi Notaro No Sub Reino dos Metazoários

Hoje vou falar de uma das minhas descobertas discográficas dos últimos tempos. Tenho feito incursões na cena musical pernambucana dos anos 70 e, ajudado por um amigo, entrei no mundo de Marconi Notaro No Sub Reino dos Metazoários.
Marconi era poeta e compositor, figura underground da cultura e boémia recifense desses anos. E lançou este disco, o seu único registo musical, depois desapareceu na obscuridade. Ou talvez nunca tenha saído dela.
No Sub Reino dos Metazoários é um disco onde se respira liberdade, rock, piscadelismo e cultura popular nordestina se enlaçam deliciosamente. E onde o poeta se mostra em registo confessional. Como aqui, neste  pedaço da letra de Não Tenho Imaginação Pra Mudar de Mulher

Esse nervoso é que me mata
essa ausência essa falta de você é que destrói
Esse nervoso é uma bola colorida
é uma pata de cavalo de corrida
É uma maçã, um adão
é uma neurose, uma curtição
Uma cerveja pra pagar
um fumo fino pra fumar
um novo beijo a se pedir
Esse nervoso, essa vontade de partir
parece que nem sou eu que to aqui
Essa chuva me acalma
mas enerva o outro eu
E me mistura com o seu e me alaga de agonia
esse nervoso é uma porcaria
Eu não queria nem nascer se não nascesse pra você
Não queria nem pedir pra você ficar
pra partir...



segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Duplo Amor

O tempo frio arrasta-me  para o mundo da sétima arte. Entro no mundo dos filmes talvez buscando acrescentar sentido à minha realidade de todos os dias. E conforto também. É terapia sim, mas tem riscos. E às vezes pode correr mal.

Pode ser na escuridão de uma sala de cinema ou no aconchego do lar, fazendo recurso aos inevitáveis dvds. E ontem foi em casa, pela noite dentro, que descobri um filme muito especial, um pequeno tesouro. Falo de Duplo Amor, do cineasta americano James Gray. 
Dele já conhecia Nós Controlamos a Noite, mas este Duplo Amor entranhou-se. Em ambos, a paisagem invernosa e cinzenta, bela e cheia de espessura. E também a o microcosmos dos judeus oriundos de Odessa.

A atmosfera deste filme parece saída das Noites Brancas de Dostoievski. Leonard/Joaquin Phoenix é um desses seres desajustados, não em São Petersburgo, mas sim num bairro de Nova Iorque. Trabalha com o pai no pequeno negócio deste, uma lavandaria, mas o seu ser exprime-se através da fotografia quase só feita de paisagens e nas pequenas brincadeiras. É um sonhador presa fácil da depressão e do suicídio (a primeira sequência é a de uma malograda tentativa).

James Gray filma o estado amoroso com uma singularidade sem paralelo no mundo cinema de hoje. Essa forma admirável de filmar é mais devedora da literatura do que do cinema.

Na história há duas mulheres: Michelle/Gwyneth Paltrow, que habita no mesmo prédio de Leonard, e
Sandra/Vinessa Shaw, filha de um comerciante judeu do bairro.
Michelle, magnífica interpretação de Gwyneth Paltrow, é fogosa e sedutora, mas também frágil; inconstante, com problemas emocionais e dependência de drogas.

Sandra parece querer resgatar Leonard da solidão, ama nele a diferença. Ela é apaziguamento onde Michelle é risco e imprevisibilidade.

Leonard vai desenvolver por Michelle um amor obsessivo, por ela parece disposto a tudo, mas mantém sempre os  laços com Sandra. Duplo Amor espelha a complexidade dos sentimentos, e Leonard não é um ser vulgar.

Na admirável sequência final, Leonard prepara-se para consumar a fuga com Michelle, rumo a São Francisco. Porém, o plano desta a atravessar o estreito e mal iluminado corredor do prédio em direcção a Leonard diz-nos que não; que isso não vai acontecer. E o resto? Bem, o resto poderia ser trágico...

Tudo neste filme de James Gray é de uma beleza contida. A luz, a cor e tons  cinzentos predominantes.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O resto da história

O resto da história, segundo Grand, era muito simples. É o mesmo para todos: a gente se casa, ama ainda um pouco, trabalha. Trabalha tanto que se esquece de amar. Jeanne trabalhava também, já que as promessas do chefe da repartição não tinham sido cumpridas.
Aqui, era preciso um pouco de imaginação para compreender o que Grand queria dizer. Com a ajuda do cansaço, ele deixara correr as coisas, tinha-se calado cada vez mais e não cultivava na jovem mulher a ideia de que era amada. Um homem que trabalha, a pobreza, o futuro lentamente fechado, o silêncio das tardes em redor da mesa - não há lugar para a paixão num tal universo. Provavelmente, Jeanne tinha sofrido. Contudo, ficara: acontece que se sofre muito tempo sem saber. Os anos tinham passado. Mais tarde, ela partira. Na verdade, não partira só. ”Gostei muito de você, mas agora estou cansada. . . Não me sinto feliz por partir, mas não é necessário ser feliz para recomeçar.” Eis, em resumo, o que ela lhe escrevera.

Joseph Grand, por sua vez, tinha sofrido. Teria podido recomeçar, como observou Rieux.

Mas faltava-lhe fé.

Albert Camus, em A Peste.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Setúbal, eleições e democracia local

Na condição de indígena de Setúbal, não poderia deixar de espreitar os resultados das eleições autárquicas de Domingo último. Porque a democracia local interessa.

A primeira impressão é a de que quase nada mudou, a correlação de forças, saída das eleições de 2009, permanece quase inamovível em 2013: a CDU conserva a maioria absoluta de vereadores na Câmara (mais um eleito do que toda a oposição) mas  não conseguiu superar inteiramente o cenário de maioria relativa na Assembleia Municipal. Isso já era marca da política local de há quatro anos atrás.

Se em termos da distribuição de mandatos nada de novo, já em matéria de votos o caso muda de figura: todas formações partidárias perdem em relação a 2009, Até mesmo a CDU, a vencedora desta eleições,baixa a sua votação; na verdade, não obstante ser hegemónica no concelho, a coligação está em perda desde 2005.

Os  partidos da oposição, por seu lado, parecem em Setúbal padecer de uma qualquer  incapacidade congénita.O PS e o BE conseguiram a proeza de descer as suas votações. Quanto ao PSD e ao CDS, juntos valem agora pouco mais de 5000 votos, mas isso são as vicissitudes da troika e da política de austeridade imposta. 

Muito poucos foram às urnas votar. Menos de 40% dos eleitores inscritos. 

Assim, a abstenção foi a rainha destas eleições, devidamente acompanhada pelos brancos e nulos em crescendo de votos: representam quase 8% dos votos expressos, mais do que a votação obtida pelo BE.

Perante este quadro abúlico, feito de abstencionismo em massa e de oposições sem vontade de poder, algo está podre no reino da Dinamarca. E não há democracia que resista à falta de oposições. Porque poder, aqui entendido como o governo da coisa pública, e oposição são as duas faces da democracia.


Há um vazio cada vez maior, isso parece ser o traço dominante da paisagem política setubalense. E não sei quem o poderá vir a preencher, é questão em aberto. A oposição partidária? Essa não dá sinais de o ser capaz. Cenário propício, maduro para um  independente? Talvez, mas também não vislumbram sinais disso numa sociedade civil  frágil e cada vez mais depauperada como é a nossa. 

Enfim, resta-nos a esperança de que as coisas nem sempre foram assim. Setúbal foi, no passado, exemplo de participação  cívica.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Servidão e desajustamento

A nossa civilização asfixia-nos cada vez mais nos estreitos limites da condição de empreendedor ou de colaborador, para empregar duas expressões da novilíngua reinante. 

As categorias empreendedor e colaborador remetem-nos para um mundo asséptico; sem conflitos, sem interesses em oposição. 
De pouco importa clamar que a desigualdade impera, neste mundo de empreendedores e colaboradores. Que muitos poucos têm cada vez mais e que, aos restantes, sobra cada vez menos. Porque também isso foi absorvido pelo duplo-pensar orwelliano, em mentes cativas do discurso dominante.
O pensamento fica assim refém de um léxico empobrecido,a ele se resumindo. Um léxico onde imperam palavras como ajustamento, crescimento, reformas estruturais, entre outras.

Mas a pulsão asfixiante da civilização ocidental é bem anterior a este nosso mundo a caminho de um futuro distópico. 
Também nas primeiras décadas do pós-guerra, nos tempos do contrato social entre capital e trabalho e da repartição  mais ou menos justa da riqueza produzida, ela se manifestava. Desajustamento, infelicidade, desejo de evasão de um mundo conformista, submetido ao primado da produção, do trabalho e do consumo. Em que o ter é tudo e o ser nada.

Pressente-se isso nos Nove Contos (Nine Stories no original) de J.D.Salinger, uma das minhas leituras do Verão. Em contos como Um dia ideal para o peixe-banana, onde a imaginação é uma resposta ao desajustamento, à sociedade mais as suas regras e futilidades, esvaziadas de sentido perante a inocência, a nostalgia mágica da infância. Um conto desarmante, comovente e trágico.

"..'Sibila,sabes o que vamos fazer? Vamos ver se apanhamos um peixe-banana."
"Um quê?"
"Um peixe-banana", disse ele".  [...]
"Não vejo nenhum", disse Sibila.
"Isso é natural. É um peixe com hábitos muito estranhos, mesmo muito estranhos."
Ela abanou a cabeça
"Entram a nadar para dentro de um qualquer buraco que esteja cheio de bananas. À entrada são peixes vulgares, iguais aos outros, mas uma vez dentro do buraco, portam-se como porcos. Sei de alguns peixes-banana que chegaram a comer setenta e oito bananas" [...]
"Depois não conseguem sair do buraco."
J.D.Salinger - Nove Contos

Também na entrevista dada ao Público, o cineasta Victor Erice vai no mesmo sentido:

"Creio que as crianças encarnam nos meus filmes uma certa forma de rebeldia. Mais do quer modificar o meu olhar, transcenderam-no. Sempre me  interessaram as crianças que são verdadeiramente  crianças e não uma cópia prematura dos adultos. O que mais me comove nelas é o seu carácter selvagem, a sua capacidade de resistência face à desgraça, o uso que fazem da imaginação. Definitivamente, a sua capacidade de virar do avesso esse simulacro de vida que a sociedade tece ao seu redor e que chamamos de realidade."
Público, 13-09-13.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Allende vive

Allende vive en cada escuela pública y laica, en cada hospital público, en cada recurso energético salvado de la voracidad de las multinacionales, en la recuperación de la dignidad ecológica, en el derecho a existir de las mayorías indígenas y de las minorías segregadas. 
Luis Sepúlveda

11 de Setembro

Num dia de 11 de Setembro,  chovia em Santiago.  E morria o sonho. A frágil democracia que ousou trilhar os caminhos da alternativa soçobrava, esmagada pelas  armas dos militares golpistas.
Foi no Chile. No ano ido de 1973.
Depois, foi  o tempo dos esbirros e dos rapazes de Chicago.
A história do golpe e das últimas horas de Allende pode ser recordada aqui